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Política e Utopia

Bem sei que devia estar a rever os apontamentos das aulas de Avaliação de Projetos ou até de Economia de Recursos Humanos, mas “Utopia” de Moore veio parar às minhas mãos por gentileza de uma amiga, pelo que a sua leitura me foi imposta! Da leitura dessa obra do século XVI emergem importantes reflexões sobre a sociedade e a forma como esta se estrutura. O que é o Estado? Qual o seu papel? Para que servem as leis, as instituições e os costumes? Como surgiram, e por que é que surgiram?
O objetivo do presente artigo não é responder eloquente e cabalmente a todas estas questões; tratar-se-á apenas de uma tentativa para tal concretização e uma chamada de atenção para a importância destas questões. Em muitas ocasiões, em contextos informais como em cafés ou entre amigos, só se discute política muito superficialmente, creio eu. Fala-se apenas de eventos corriqueiros e efémeros; fala-se, por exemplo, de Rui Rio, da gerigonça, daquele fulano que foi submetido a um processo judicial por corrupção ou branqueamento de capitais, entre outros.

Há, todavia, uma alternativa para analisar e discutir política: estudar os seus fundamentos e princípios basilares. O que as notícias retratam e o que muitas pessoas discutem são meras politiquices cosméticas. Quem não compreende concetualmente o sistema de Hondt, não devia criticar, por exemplo, a atuação do atual governo. Por outras palavras, quem não conhece e não entende os fundamentos da política (por que razão existe, a sua evolução e a forma como está estruturada noutros países), não deve comentar a atualidade.

Em primeiro lugar, há que responder à questão “O que é o Estado?” e, por conseguinte, definir o conceito de poder. O Estado não mais é que um “poder” centralizado, legitimado pela coerção física, que se projeta sobre uma extensão territorial mais ou menos extensa. É-nos intrínseca a necessidade de definir uma fronteira clara entre o “nós” e o “eles”, principalmente, em contextos de escassez de recursos e competição pelo seu acesso e exploração! Tal comportamento tribal — o de nos agregarmos em grupos com um número finito de pessoas — é responsável por fenómenos sociais tão diversos como a existência de nações, de culturas, de xenofobismo e de clubes de futebol. Circunscrever, portanto, a nossa área de atuação a um determinado território e desenvolver relações interpessoais de mútuo auxílio e de cariz comercial com algumas pessoas geograficamente próximas (o “nós”), promove o desenvolvimento dos designados Estados.     
  
Paralelamente a estas considerações, há a questão do “poder”. O que é o poder? Sem esta noção basilar, uma proposta de definição de Estado é incompleta!

O poder define-se pela capacidade que algo ou alguém tem para exercer a sua vontade sobre o seu meio circundante, quer seja sobre o meio natural, quer seja sobre o mundo social. A tecnologia, por exemplo, confere poder ao ser humano uma vez que, através do uso de ferramentas, exerce de modo bem-sucedido a sua vontade sobre a natureza (construção de barragens para produção de energia hidráulica). Mais um exemplo seria a coerção física. O indivíduo A quer que o indivíduo B faça X, porque X satisfaz uma necessidade do indivíduo A. Ora, através da mera força muscular e da intimidação física, A coage B a atuar como o primeiro quer. As forças policiais e as tropas militares correspondem ao músculo do Estado para que este, assertivamente, faça respeitar a lei e a ordem social. Para que a palavra da Assembleia Nacional tenha impacto, tenha poder, as forças armadas e policiais terão de existir porque, reitero, a ameaça à integridade física e à liberdade física dos cidadãos é o último recurso que um conjunto de pessoas (o governo e todas as instituições estatais) têm ao seu dispor para que as leis e a ordem social vigorem.

Uma outra vertente do poder, a que se refere ao “soft power”, é igualmente relevante. Normalmente, tal está associado à política. Já agora, o que é a política? Para respondermos ainda que parcialmente a esta questão, podemos recorrer ao axioma aristotélico: o homem é um animal social. De facto, se pensarmos bem, o que é que motiva fundamentalmente as pessoas que apostam na política? O que é que querem? Temos duas opções:
  1. As pessoas que investem na política são movidas pela ânsia primitiva e um tanto animalesca de se apoderarem de recursos económicos e tomarem decisões que afetam a vida de todos, da comunidade. Neste raciocínio possível, o que é que motivaria alguém a ser Presidente da Câmara de um qualquer concelho português? Recebendo fundos estatais, tem o poder de alocar tais recursos onde bem quiser! Potencialmente, alocá-los segundo um critério favorável à sua pessoa e aos seus em detrimento da comunidade que supostamente está a servir.
  2. As pessoas que investem na política são movidas por um desejo altruísta de contribuição à comunidade.

Bom, qual será a opção que descreverá melhor a motivação por detrás da atuação das pessoas que investem na política? Quando me refiro às pessoas que investem na política, estou a falar daquelas que ocupam cargos políticos ou que se candidatam e participam ativamente na cena política. 

Em “Utopia”, a personagem Rafael Hitlodeu relata a sua experiência na sociedade de Utopia na qual as instituições, leis e costumes são diferentes da sociedade ocidental. Antes de mais, uma advertência: a obra em questão foi escrita e publicada no século XVI, num contexto histórico e socioeconómico distinto do actual, pelo que se aconselha uma interpretação prudente do texto.

O mais interessante no relato e que ficou patente na obra foi a inexistência de moeda e de propriedade privada na sociedade utopiana. Segundo o fundador desta civilização, Utopos, profundo conhecedor da natureza humana, era fulcral desenhar um sistema de incentivos que dissuadisse comportamentos não altruístas como patenteado na opção 1. Segundo Utopos, sem um meio de troca geralmente aceite, passível de acumulação e de reserva de valor, e sem propriedade privada, os cidadãos não teriam incentivos a acumular e a competir por riqueza e, subsequentemente, não haveria solo fértil para que emergissem desigualdades económicas e sociais gravíssimas no seio da comunidade. É interessante, como exercício intelectual, hipotetizar cenários deste género, todavia, é complicado descrever como tal se concretizaria! As coisas não são assim tão simples. Temos como exemplo o socialismo que foi implementado por países como a União Soviética, e no processo de eliminação das classes, criaram-se outras duas: os burocratas estatais e o povo.  

Ler “Utopia” é deveras enriquecedor para perceber o que é a política e o Estado porque, ao apresentar uma alternativa que se nos aparenta melhor, faz-nos questionar o papel das instituições e se os resultados apresentados pelo actual sistema económico e político serão os melhores.

Alex F. Alves

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