A
peça de teatro “Actores” é o que este
texto, supostamente, vai retratar. E há-de retratar, ou pelo menos tentar. Mas
é importante, à semelhança das edições anteriores, alertar o leitor para os
constrangimentos destas palavras serem escritas por mim. São alguns,
principalmente quando estamos a falar de teatro. Pode dizer-se que a minha sensibilidade para a
apreciação artística não é a mais apurada. A última vez que tive a ideia de
visitar uma exposição de pintura surrealista (vá-se lá saber porquê!), com Miró
ao seu leme, objetei veementemente que aqueles quadros podiam ter sido
retirados das pinturas feitas pela turma de Expressões Artísticas e
Físico-Motoras da EB1 da Pasteleira. É este o alcance com que estamos a lidar,
pelo que o leitor não deve expectar uma tirada intelectual, profunda e
relevante que vá dissecar o que é afinal esta peça.
Ainda
assim, essa é uma das belezas do teatro e de todas as artes, em que a
interpretação oscila enormemente conforme o espetador. Como diz Gonçalo Tavares
na sua análise a “Atores”: “se toda a
intensidade está no ator, o que sobra para quem vê?”. No meu caso não sobra
muito, mas vamos lá ver.
Os
primeiros minutos da peça adivinham uma demonstração do que é ser ator, com
todos os intérpretes sentados na sua cadeira à espera da sua vez para se
transfigurarem (o que quer que isto signifique). Cada ator vai individualmente
a uma cabine onde encara uma câmara que dá um grande plano da sua imagem ao
público. Segue-se a representação repetitiva das mesmas falas, intercaladas pelas
intervenções sucessivas do encenador. “Agora com alegria e euforia…agora só
alegria…tristeza e angústia…só tristeza.” Lendo uma entrevista ao encenador
Marco Martins, soube mais tarde que, apesar das linhas dos textos serem
pré-estabelecidas, as emoções que os intérpretes deviam representar não estavam
previamente definidas. Desta forma, o casting mostra o “trabalho do ator, puro
e simples”. Inteligente e ousado, no mínimo. No entanto, este início “é uma
espécie de prólogo, mas depois o espetáculo não vai por aí”, avisa o dramaturgo
na mesma entrevista. E não foi mesmo, logo na altura que eu esperava algo
linear e facilmente atingível. O 3(-) que tive a Oficina de Teatro no ensino
básico faz agora mais sentido.
A
obra entra então numa linha autobiográfica dos intérpretes, em que são
representadas cenas de peças passadas, em que cada um dos atores esteve
envolvido separadamente. É difícil arranjar uma situação com mais níveis de
distorção da mensagem original do que esta. O ator representa a partir da
memória que tem do evento que viveu, enquanto os outros elementos que o
acompanham na cena, mas não viram a peça respetiva, têm um cenário mental
criado, que certamente difere daquilo que se passou. O último fio condutor, o
público e a sua “intensidade”, veem tudo isto através de lentes que, dependendo
dos circuitos neuronais dos seus cérebros, processam a informação à sua
maneira. Este caminho quase que retira o chão debaixo do espetador e não lhe
permite fazer a dicotomia entre o real e a ficção. Assiste-se sim a uma mescla
de memória, imaginação e desejo. Mas é nesta perda de fundo que se cria uma
familiaridade e aproximação palpáveis do público à emotividade que se assiste
em palco.
À
semelhança do que acontece no Senhor de Matosinhos, “Actores” convida o espetador a entrar numa montanha russa de
emoções que o absorve por completo, mas que de tempo a tempo, faz uma chamada à
realidade, como que uma paragem brusca seguida de avisos nos altifalantes. Mas
nesta peça, quando o encenador usa o altifalante, não se ouve “mais uma
moedinha, mais uma voltinha”. O que faz sentido, porque duvido que uma moedinha
fosse suficiente para comprar um bilhete para o teatro.
Os
“Actores” transmitem genuinamente
aquilo que são os seus medos e os seus sonhos, atuando a partir de um ato
recordado, resultado da mente humana. No fim de contas, essa é a verdadeira
realidade. A obra envolve de tal forma que apenas se dá conta que se está a
assistir a uma peça de teatro quando a cortina desce. Quer dizer, a cortina não
desce. O final é um pouco mais intenso do que uma mera interposição de um pano entre
o público e os protagonistas. Mas vou-me abster de ir mais além, para não fazer
um spoiler de “Actores”. Já nos bastam as redes sociais com o Jogo de Tronos.
Jim Carrey,
depois de tantos anos a encarnar personagens, considera hoje que ele mesmo não
passa de uma personagem que representa todos os dias: “Jim Carrey é uma grande personagem, e eu tive a sorte de ficar com
o papel.” Em “Actores”, o momento em
que a personagem acaba e a pessoa começa está sempre muito enovoado, ou mesmo
próximo da inexistência. O que é no mínimo intrigante. Porque se a vida for de
facto uma representação, os comuns mortais como eu, cujos pais não os mandaram
para a escola de teatro, têm de começar a ir a castings e audições, porque até agora só desempenhámos um papel.
Jorge Gonçalves

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