Sintonizamos um
qualquer canal televisivo no seu horário nobre.
Ouvem-se gritos,
um suceder de interrupções, homens irados a apontar para documentos mal
impressos como prova do que estão a gritar, insultos, sangue, suores nervosos e
pressente-se a possibilidade de lágrimas por parte do moderador. O volume
crescente a que são feitas as interrupções torna difícil discernir qual a razão
desta guerrilha verbal, na qual nos vemos agora no papel de observadores
internacionais.
Após alguns
momentos conseguimos perceber. Aparentemente jogou-se à bola no fim-de-semana. E
este particular trio de adeptos, tremendamente fora de forma, está aqui reunido
perante nós para tentar debater e analisar a forma como se praticou esta
atividade desportiva.
A abordagem que se
faz ao tema não é necessariamente a mais intuitiva. De forma a esmiuçar a forma
como se jogou à bola este fim-de-semana, o painel está agora debruçado sobre o
processo de nomeação do fiscal de linha para este jogo, depois de já terem analisado
as falhas sintáticas de um email de um dirigente desportivo, e de terem
filosofado sobre as falhas arquitetónicas de uma bancada de um estádio.
Cada um destes
três homens defende as cores do seu clube com um fervor religioso digno da mais
lunática das igrejas evangélicas. É-nos muito difícil imaginar que esta
sucessão (e até sobreposição) de monólogos incendiários a que assistimos possa
em alguma circunstância transformar-se num diálogo racional.
Adeptos fervorosos
são, por definição, imunes à refutação das suas ideias. Pela sua própria
natureza jamais podem tolerar que se ponham em causa os seus dogmas, que neste
caso correspondem à superioridade das suas equipas, e não estão dispostos a
fazer qualquer cedência neste ponto. O que em princípio faria de programas de
debate só com adeptos fervorosos, espetáculos frustrantes, ou no mínimo
inúteis.
Mas na realidade
não é isto que se verifica, não conseguimos deixar de prestar atenção a estes
programas. Vemo-los com o ar de superioridade com que vemos reality shows,
trash television, ou uma mulher a gritar com o marido no meio da rua.
O que nos interessa
não é perceber melhor como o 4-3-3 potenciou o jogo ofensivo, disso percebemos
tão pouco ou menos do que estes senhores. O que queremos é confronto. É ver
estes homens, que fora destes programas são respeitáveis jornalistas, médicos e
advogados, a berrar, a jurar lealdade aos seus clubes, a negar a realidade, a
fazer contorcionismos argumentativos para justificarem uma hipócrita mudança de
opinião, a contradizerem-se, a dizerem que foi bola na mão, a insultarem-se, a dizer
que afinal foi mão na bola, a perderem a faculdade da razão, em laivos de
paixão clubística dizerem que não admitem o que acabou de ser dito sobre o seu
clube, e numa espiral de insanidade a saírem em protesto do programa.
A paixão desmedida
que nutrem pelos seus clubes entretêm-nos, e é o que atrai audiências a este
debate tão irracional. Jorge Jesus sabia do que falava quando, numa conferência
de imprensa há uns anos, parafraseou outro companheiro pensador [Pascal] dizendo
que «a paixão tem razões que a razão não entende».
Findo este circo,
mudamos de canal. Estamos agora a ver um programa, expectavelmente mais sério,
de debate político, onde 5 pessoas, agora cada uma a defender o seu partido, aparentemente
discutem uma qualquer alteração legislativa. Primeiro vemos uma pessoa a
apontar fervorosamente para uns documentos, há algumas interrupções, alguns
berros, depois alguém a jurar lealdade ao seu partido, a negar a realidade,
outro a fazer contorcionismos argumentativos para justificar uma hipócrita
mudança de opinião, outra a contradizer-se, outro a perder a faculdade da
razão, em laivos de paixão partidária a dizer que não admite o que acabou de
ser dito sobre o seu partido, e numa espiral de insanidade a sair em protesto
do programa.
Estamos quase
certos, mas mesmo assim verificamos: - sim, as pilhas do comando ainda
funcionam, mudamos de facto o canal, trata-se um programa diferente.
Não nos entretém
tanto este segundo confronto irracionalmente apaixonado, na verdade, ao
contrário do que acontece com o 4-3-3, até queríamos e precisávamos de ver
debatidas estas possíveis alterações legislativas que nos podem afetar.
Enquanto que no
mundo do futebol certas hipocrisias e paixões são perdoáveis, e por vezes até
engraçadas; na política partidária o tipo de lealdade que faz com que as
posições dos apoiantes de um partido mudem de acordo com o que convém ao
partido, ganha contornos um pouco mais preocupantes. Neste campo é crucial que
os jogadores tenham ideias próprias, e um certo nível de consistência e de independência
intelectual para que não sejam meros porta-vozes das instituições monolíticas e
dogmaticamente inquestionáveis que defendem.
Como – se não por
estes clubismos partidários – se explica que deputados euro-céticos do BE agora
citem os elogios de Bruxelas para defender o caminho que se está a seguir? Que
deputados do CDS que acreditavam na austeridade, sejam na oposição os
principais críticos aos cortes no investimento público? Ou que, na corrida para
a presidência do PSD, um candidato acuse o outro da ignóbil traição ao partido
que foi ter ousado colaborar civilizadamente com o atual secretário-geral do
PS?
As condutas dos
partidos não devem ser vistas como um dogma ao qual se deve ser fiel, devem ser
questionadas e postas em causa não só pelos seus opositores, mas principalmente
pelos seus apoiantes.
A atitude cada vez
mais comum de olhar para o próprio partido sem espírito crítico, como um clube
de futebol pelo qual torcer, põe em causa um debate político que se quer franco
e aberto e no mínimo mais próspero que o futebolístico; e cria adeptos
fervorosos que são inúteis para qualquer tipo de debate político que almeje
algum consenso.
Até isto mudar,
fazemos zapping entre estes programas, e ao jeito de Orwell na sua fábula
«Quinta dos Animais», olhando pela janela que aqui é o nosso ecrã televisivo, olhamos
de debate político para debate futebolístico, e de debate futebolístico para
debate politico, e já não conseguimos distinguir quem defende um clube de
futebol e quem defende um partido político.
Luís Barreiros

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