Como podem estar todos tão convictos da sua posição, e
ainda assim nenhuma das posições partidárias servir o interesse nacional?
Não são raros os assuntos em discussão na Assembleia
da República que deixam a opinião pública desconfiada das reais intenções das
propostas que surgem e que são posteriormente aprovadas naquela câmara. As
questões recentemente levantadas com as alterações à lei do financiamento dos
partidos são disso um exemplo. Estaremos a ser enganados por um conjunto de
indivíduos maldosos e mal-intencionados ou estamos a ser vítimas da natureza
humana e dos impulsos para o autoengano que os indivíduos revelam na altura da
tomada de decisão?
A questão relevante na abordagem desta temática não
passa pelos custos que a democracia acarreta (custos de financiamento dos
partidos) pois, à exceção de uma parcela de indivíduos monárquicos ou de
indivíduos com preferência por líderes ditatoriais, o sistema vigente contínua
a ser pelo menos o menos mau. Porém, é necessário dignificá-lo.
De forma tão simples quanto possível: a proposta que
foi levada à Assembleia da República pretendia dar resposta às recomendações do
Tribunal Constitucional no sentido de alterar o papel da ECFP (Entidade de
Contas e Financiamentos Políticos), de tal forma que esta se tornasse a
responsável em primeira instância pela fiscalização das contas (com competência
para aplicar coimas e sanções) e a decisão apenas subiria ao plenário do
Tribunal Constitucional nos casos em que os partidos decidissem recorrer.
Contudo, e aqui surge a contestação, as alterações que
foram aprovadas na Assembleia da República incluíam algumas que foram além das
requisitadas pelo Tribunal Constitucional, deixando de lado outros pedidos
daquela instituição. Neste conjunto de alterações adicionais estavam a
possibilidade de restituição do IVA pago em todas as atividades partidárias, ou
o fim do limite de verbas que poderiam ser obtidas através da angariação de
fundos. Uns afirmaram que se tratavam de alterações pontuais, outros defenderam
que as medidas contribuíam para acabar com a “discricionariedade de
interpretações” por parte da autoridade tributária, e outros ainda apontavam para
”recomendações do próprio Tribunal Constitucional” como justificação para terem
votado a favor sem concordarem com as alterações.
Quando este tema entrou em discussão na opinião
pública e foi abordado por vários elementos de cada partido, pudemos ver que
cada um tem uma crença (convicção) distinta relativamente à temática, e
portanto todos os que aprovaram a proposta de alteração defendem-na de acordo
com diferentes argumentos. Cada deputado que contribuiu para a alteração, ou
que em nome do partido defendeu a alteração, não analisou a questão de forma
neutra. E, mesmo que quisesse, tal não seria possível pois estavam a decidir
sobre um tema do seu interesse.
Como tal, da mesma forma que os partidos apresentaram
uma proposta (quase) unânime, também do lado dos cidadãos (opinião pública) as
expressões de repúdio e de crítica foram (quase) unânimes. Se, do ponto de
vista de quem está dentro da assembleia, uma isenção mais alargada
relativamente ao pagamento do IVA faz todo o sentido, para quem está fora não parece
assim tão compreensível que organizações políticas estejam isentas de IVA em
atividades que o comum dos mortais também realiza.
Ao contrário do Homo
Economicus que preenche os modelos em economia, a natureza humana é baseada
no auto interesse de cada indivíduo, é desta forma que muitas das suas decisões
são motivadas (ainda que em determinados contextos surjam comportamentos que
contrariam a procura pelo auto interesse). A questão não está então na
competência dos deputados presentes na Assembleia da República, pois quero
acreditar que na maioria dos casos são indivíduos bastante capazes. O problema
que se levanta, e que a psicologia identificou, é que os indivíduos mais
capazes (analiticamente mais sofisticados ou mais educados) são ótimos decisores
quando as questões sobre as quais devem decidir são neutras, isto é, quando
estas decisões não ameaçam diretamente nenhuma convicção carregada de
subjetividade (os valores de um indivíduo).
Quando os deputados são colocados a decidir sobre algo
que afetará diretamente o seu partido, não pode ser expectável que estes sejam
capazes de ser os melhores decisores. As crenças que estes indivíduos têm sobre
a importância do seu trabalho parlamentar dão origem a reações emocionais
fortes, a que frequentemente assistimos em debates televisivos ou na Assembleia
da República (agitação, hostilidade), conduzindo-os para uma cognição motivada,
em que a argumentação procura viabilizar a ideia através da racionalização da
importância das alterações. Na opinião pública, por outro lado, a análise feita
a esta questão é, neste caso, menos enviesada do que aquela que os deputados
podem realizar.
Assim, a opção tomada por um dos partidos que esteve
na discussão (o CDS) não é uma exceção ao comportamento humano. Os deputados
daquele partido funcionam exatamente da mesma forma que os restantes. A
diferença é que, tanto quanto me foi possível compreender, neste partido existe
uma espécie de “Código de Conduta” que rege esta temática, ou seja, uma forma
de comprometimento (externo) dos deputados deste partido. Embora presumindo que
possa ter existido discussão interna no partido, os deputados agiram de acordo
com a forma de comprometimento a que estavam sujeitos, de tal forma que
concluíram que mantendo a sua posição ficariam a ganhar perante a opinião
pública e ainda poderiam retirar dividendos da alteração da lei. Os deputados
afetos a outros partidos, que também se comportam como agentes imperfeitamente
Bayesianos (têm uma capacidade de previdência imperfeita) e que não estavam
sujeitos a qualquer forma de comprometimento externo, não anteciparam que a
discussão levantada no plenário pelo CDS tivesse tamanha repercussão. Ambos os
casos são exemplos de agentes que perseguem o autointeresse, mas em que num dos
casos uma forma de comprometimento obriga os agentes a autocontrolarem a sua
decisão/escolha.
Como nós, seres humanos, que somos o primo menos
“perfeito” do Homo Economicus, os
deputados não conseguiram antecipar o que aconteceria quando a proposta fosse
votada. Isto demonstra ainda a sua inconsistência temporal. Os deputados agiram
de forma a tentar maximizar o seu retorno neste momento, ainda que
intertemporalmente talvez uma alteração mais simples à lei (que os beneficiasse
apenas de forma ligeira) fosse uma decisão mais assertiva. No futuro,
provavelmente teriam nova oportunidade para fazer uma nova (pequena) alteração,
não levantando ondas de choque desta dimensão. Portanto, os deputados e os seus
respetivos partidos ficaram mal na “fotografia”, contudo ainda não se sabe em
que ponto ficará a alteração da lei.
A conclusão para tudo isto, do ponto de vista da
moralidade e justiça, teria sido a colocação das propostas em discussão
pública. Não só porque conferiria transparência ao processo, como seria
submetido a uma análise menos enviesada, que provavelmente não seria má para os
partidos. Credibilizariam o seu trabalho e, ao mesmo tempo, convidavam os
cidadãos a contribuir para uma decisão na qual a legitimidade dos partidos para
decidir é limitada.
Hugo França

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