Em linha, junto aos microfones, dispõem-se as
personagens que dão vida à peça. O palco, caótico na sua organização, denota
tudo o que se seguirá. É num cenário de cortinas entreabertas, jogos de
espelhos, e onde a luz e a sombra se gladiam constantemente, que “Elizabeth
Costello” se desenrola.
Elizabeth é uma septuagenária e mundialmente
reconhecida escritora. Surge recorrentemente na obra de J.M. Coetzee – famoso
romancista sul-africano e vencedor do Prémio Nobel da Literatura -, mas é o
livro homónimo, “Elizabeth Costello”, de 2003, que serve de base para a
produção desta peça. Envolvendo a audiência, por um largo momento, numa
realidade alternativa onde Elizabeth se coloca em frente a um portão apenas com
o intuito de o atravessar mesmo sem fazer ideia do que esperar do lado de lá.
Um guarda, assertivo e experiente, com trago de quem sabe o que esperar de quem
por ali passa, encarrega-se somente de fazer cumprir o regulamento: Elizabeth
terá que descrever as suas crenças para que possa fazer a travessia.
Assim começa e assim acaba “Elizabeth Costello”: a
protagonista procura passar o portão, procura passar para o outro lado. É no
entretanto que ficamos a conhecer Elizabeth, que faz uma viagem pela vida
vivida em jeito de balanço.
A protagonista encarna a figura do intelecto. Sobre
tudo questiona. Sobre tudo tem dúvidas. Sobre tudo, sobretudo, pensa. Pensa e
racionaliza. Não se inibe de falar sobre qualquer tema. Porém, quando
questionada, Elizabeth é peremptória: “Eu tenho crenças, mas não acredito
nelas”. Confuso? Terá a incessante busca pelo conhecimento sido infrutífera?
Será que Elizabeth, confrontada com a travessia, ignora as convicções que a
acompanharam e foram crescendo ao longo da vida? Certo é que estamos perante
uma mulher e as suas questões. Questões que acompanham a Humanidade desde
sempre.
E que questões são essas? A própria humanidade é uma
delas. Elizabeth coloca a condição humana em perspetiva, examina o Homem e as suas
ações. A natureza humana é, para si, um mistério: “não conseguimos imaginar a
morte de três milhões de pessoas como em Treblinka, apesar de sabermos contar”.
Do Holocausto e da fragilidade humana estabelece um paralelo com a vida dos
animais. Insurge-se contra a produção de carne em massa, cuja semelhança é
demais evidente com os campos de concentração, e sentencia “lá por termos
tratado os judeus como gado, não quer dizer que os animais devam ser tratados
como judeus”. Regressa, mais tarde, ao Homem enquanto ser da Criação, mas é
Deus quem a intriga: “Tenho cada vez mais dificuldade em compreender o que
significa acreditar em Deus, quanto ao Diabo não tenho dúvidas”. Estará
Elizabeth a pensar no outro lado? A vida e a morte são um só. “Os deuses ao
darem a morte aos humanos deram-nos vantagem. Vivemos mais intensamente”.
Será mesmo assim? Elizabeth olha para trás, olha para
o passado que lá ficou. Foi escritora. Terá sido algo mais? É agora, quando
está “tão próxima da morte como a morte dela”, que se apercebe que a história
da sua vida como mulher, mãe e irmã sempre assumiu um papel secundário. Foi
escritora, “secretária do invisível” como diz, alguém a quem “não é permitido
ter crenças”.
“É um problema de ponte, um problema de se improvisar
uma ponte. As pessoas resolvem estes problemas todos os dias. Resolvem-nos e,
uma vez resolvidos, avançam”, crê J.M. Coetzee. Elizabeth também terá que o
resolver. Não sabe o que a espera, não sabe o que poderá encontrar. É humana,
tal como todos os que a antecederam e todos os que a ela se seguirão.
Tal reconstrução duma realidade sem significado seria
inútil, não fosse o teatro a representação do quotidiano do ser humano, através
das suas necessidades. No palco onde os atores se tornam personagens, dão voz a
ideias polémicas e as corporizam, o que seria do teatro sem a crítica ao ser
humano nas suas mais inexplicáveis vertentes? É que a ponte e o portão colocam
ambos o mesmo problema do atravessamento. À semelhança da protagonista, também
nós construímos “pontes” sem cessar, crentes em algum resultado futuro (seja
ele qual for). Fazemo-lo alienando o dom da autoconsciência, sem nunca saber
onde estas pontes nos irão levar. Trata-se duma questão, em primeira instância,
de continuar, e só depois de começar. Como diz o guarda: “Estamos sempre a ver
gente como você”.
É o que fica de “Elizabeth Costello” numa versão a
carne e osso recentemente recriada no Teatro Nacional de São João. Uma peça de
teatro tão singular quanto a arte que lhe dá vida. Com encenação de Cristina
Carvalhal e com Cucha Carvalheiro no papel principal, o elenco conta ainda com
Bernardo de Almeida, Luís Gaspar, Rita Calçada Bastos e Sílvia Filipe.
José Diogo Santos
José Mário Sousa

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