Desde os primórdios da civilização que o ser
humano mostra necessidade de expor cenicamente os seus dramas pessoais e
vicissitudes existenciais. É também, pela sua natureza, um ser que é
insatisfeito, tentando diariamente testar os seus limites aos mais variadíssimos
níveis. A simbiose destes elementos traduz-se na criação de reality shows, programas televisivos fast food, de consumo instantâneo e de
satisfação momentânea. São programas com um nível cultural baixo, que pretendem
captar a atenção dos espectadores através de tarefas e desafios propostos aos
participantes que desencadeiam reações, atitudes e conflitos entre eles.
Arriscar-me-ia a dizer que um reality show é, à semelhança da
experimentação em animais irracionais, um método de análise comportamental através da aferição
de reações em situações e contextos variados. Será este formato de programa tão
diferente de testar um fármaco num “ratinho”? Existe alguém a manipular a experiência de parte a parte,
contudo, na versão humana este domínio é muito mais acentuado, existindo uma
distorção vultosa da realidade, uma vez que se trata de uma representação fora
do contexto de vida dos participantes, ou seja, são pessoas que se encontram num
ambiente criado artificialmente e, portanto, não existe a autenticidade
propalada. A ideia e o próprio nome do programa apontam na direção da
busca da realidade in natura.
Tudo começa na decisão dos candidatos. Já se
questionaram do porquê de em todos os programas deste género estar presente um
vilão? Alguém com certas idiossincrasias como ser frontal e assumir uma
personalidade vincada e forte. Ou da existência de um casal que constrói um
enredo e uma bela história de amor?
Tudo é propositado, não havendo personagens iguais entre si. Mesmo sendo estas pessoas alvo de grandes críticas
sociais, o objetivo primordial é criar relações empáticas de modo a que
qualquer espectador se consiga identificar com pelo menos uma delas. Será esta a principal razão
que justifica a audiência destes programas? Será este o motivo da assistência regular
por parte dos telespectadores?
De facto, o processo de identificação com cada
concorrente parece estar na base do sucesso das representações da vida real, ou
seja, a possibilidade de encontrar um espelho/representação para as nossas
próprias experiências pode ser um meio de nos sentirmos incluídos na sociedade,
de encontrar elementos que nos auxiliem na elaboração das nossas próprias vivências
e de amenizar a solidão intrínseca à própria existência humana. A componente
social ganha terreno e já
não somos os únicos, não estamos completamente sós, uma vez que os outros
participam do drama que julgávamos exclusivamente nosso.
Para além disso, estes programas estimulam a
capacidade bem como o mecanismo que os seus intervenientes têm de lidar com
situações de alto stress e
instabilidade. Estes momentos são muito apreciados pelo público porque culminam
as múltiplas relações e histórias com a necessidade de ultrapassar adversidades
quotidianas. Como diria a Forbes, a revista americana, “a sociedade vive um
momento que pode ser dividido pela busca da sobrevivência e da convivência”. O
prazer advém do triunfo e da omnipotência, o que acaba por criar um ciclo
vicioso de consumo e audiência.
A questão coloca-se: Até que ponto é que este processo de
identificação e rendição ao programa altera o comportamento do espectador e que
consequências poderão advir desta modificação? As alterações nas dinâmicas
sociais mostram-se intimamente ligadas às mudanças nos processos e aparatos
tecnológicos comunicacionais. Nestes reality
shows convergem diariamente diversos problemas sociais como a recriminação de casais
homossexuais, a visão social face às mulheres estrangeiras ou a violência
doméstica. Se a alteração comportamental agisse no sentido do combate a certos
estigmas sociais e na divulgação de testemunhos, de forma a obter uma sociedade
mais evoluída e capaz de lidar com adversidades, então estes programas seriam
extremamente construtivos para a sociedade em geral, contudo isso não acontece.
Ao invés, criam-se, para além de todos os existentes, estigmas das pessoas que
participam neste tipo de shows,
sendo muitas delas rotuladas negativamente e associadas a comportamentos
desviantes. Apesar dos processos de identificação ocorrerem, ninguém quer ser
associado aos concorrentes, muito menos fazer deles exemplos, acentuando
estigmas cada vez mais difíceis de ultrapassar.
Os reality shows, como uma das
versões pós-modernas do teatro grego, surgiram a partir do crescente
desenvolvimento tecnológico e das transformações ocorridas no cenário socioeconómico
mundial desde o século passado. Programas que são retratos fiéis do mundo em
que vivemos. A morte do sujeito, a fugacidade das experiências, a desvalorização
da história e o culto da imagem são difundidos sem crítica ou reflexão.
Presenciamos uma
dispersão existente entre a ficção e a realidade, o que impede os processos de
simbolização e abstração inerentes ao pensar. Somos hoje consumidores por
excelência, sem capacidade para questionar o que ingerimos, adormecidos numa
passividade avultante.
Francisca Duque de Carvalho

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