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“Da Rússia com amor”

As chamas já não deflagram em Kemerovo. O fumo negro rodopia no ar, última e efémera prova da tragédia que vitimou 64 pessoas (russos?), maioritariamente crianças, no centro comercial “Cereja de Inverno”. Putin comove-se e condena - “negligência criminosa”. Tem, por maioria de razão, toda a legitimidade para proferir tal afirmação – um espaço público sem as mínimas condições de segurança e com graves falhas estruturais não deveria estar aberto ao público – contudo, demonstra (ou finge?) ser oblívio ao facto de esta calamitosa falha ser também da responsabilidade das instituições públicas e, em última instância, do seu executivo.  O incêndio nesta pacata cidade industrial foi apenas mais uma mancha nas muitas que preenchem o currículo do homem mais temido da política internacional.


Um homem que conquistou a sua fama na guerra e estabeleceu o seu poder (quase) absoluto na paz.

“De começos humildes, grandes feitos”. É na sua terra natal, Leninegrado (atual São Petersburgo) que Vladimir Putin dá os seus primeiros passos na política. Depois de estudar Direito e ter ingressado no KGB – serviu como espião na Alemanha de Leste e chegou ao posto de tenente coronel – é tomado debaixo da asa de Anatoly Sobchak, presidente da cidade e seu antigo professor, ocupando o cargo de Chefe do Comité de Relações Externas, tendo como objetivo a promoção do investimento externo e relações internacionais. Ainda não havia completado um ano na posição e já estava a ser investigado por ter permitido a exportação de metais valiosos em troca de auxílio alimentar estrangeiro, que nunca chegou a São Petersburgo. Não obstante as pressões para o seu afastamento, Sobchak segura-o e ainda lhe confere mais intervenção no governo da cidade. Em 1994 é encarregue de reabilitar a secção regional do partido liberal “Nossa Casa”, oportunidade que aproveita para se dar a conhecer aos líderes em Moscovo. Daí ao Kremlin seria um pequeno passo. Com a derrota de Sobchak nas eleições autárquicas de 1996, Putin passa a integrar o executivo liderado por Boris Yeltsin – presidente da Rússia entre 1991 e 1999. Inicialmente, como chefe de gabinete, Putin é, posteriormente, nomeado diretor dos serviços secretos russos (FSB, sucessor do KGB). No entanto, a sua ascensão meteórica não ficaria por ali. Atentando nas qualidades do jovem político russo, sobretudo a sua rigidez e lealdade, e depois de algum insucesso nas suas escolhas anteriores para a posição, Yeltsin nomeia-o primeiro-ministro, em 1999, demonstrando, desde o primeiro momento, a intenção de que Putin fosse o seu sucessor na presidência. Nesta teia de conexões, Putin deve muito a Boris Berezovsky, oligarca russo, que terá proporcionado muitos dos encontros entre o primeiro e a elite de Moscovo. Esta relação torna-se especialmente interessante e assaz irónica se considerarmos a inimizade que passou a unir Putin e Berezovsky – que, aliás, se exilou em Inglaterra – até ao falecimento deste, em 2013.

Putin continuou, sem grandes problemas, a trilhar o seu caminho até à cúpula do Kremlin. As portas estavam escancaradas. Yeltsin renunciou ao cargo na véspera de ano novo de 1999 e, assim, a Rússia entrava no novo século com um novo líder. A crítica estava dividida - a revista “The Economist” qualificava-o como “medíocre”, enquanto que outros analistas políticos consideravam a decisão uma “jogada de mestre”. Certo é que Putin desde muito cedo se impõe e demarca do seu antecessor – encarado como um alcoólico rodeado por uma “entourage” corrupta. “Vamos matá-los na sanita se for preciso”. As palavras do presidente tornam-se o hino ao raide do exército russo em Grozny, capital da Chechénia, após um suposto atentado levado a cabo pelos rebeldes da região num complexo de apartamentos em Moscovo. O relato das atrocidades cometidas não sucedeu a agitar o resto da Europa, que assistia impávida e serena à brutalidade sem limites. Os russos, por seu lado, rejubilavam. Os níveis de popularidade de Putin dispararam, batendo recordes, com muitos a afirmarem orgulhosamente que o novo presidente havia devolvido à nação a força e o vigor de outrora. Este nunca se fez de rogado, continuando, até aos dias de hoje, a cultivar uma imagem de macho alfa, seja com caçadas ou eventos desportivos em sua homenagem, tudo serve para o apresentar como um chefe de governo apto e extremamente disciplinado, sem temor algum. Além de todas estas demonstrações de força, Putin também conquistou os russos pela recuperação da Economia, que havia colapsado autenticamente durante o mandato de Yeltsin. Esta “tempestade perfeita” reforçou ainda mais o seu poder e tornou-o no líder incontestado que ainda hoje revela ser. Curiosamente, muito deste poder foi conquistado pelo caminho mais fácil. Putin é acusado de “ter tirado os bandidos da rua e de os ter colocado no Estado”. A corrupção cresceu exponencialmente, mas, por outro lado, os cidadãos sentiram-se mais seguros no quotidiano e nem sequer protestaram ao ver Putin concentrar em si as responsabilidades, quer fossem elas relativas à escolha dos governadores regionais ou ao controlo dos oligarcas.

O estado de graça não iria durar para sempre. Depois de em 2008, por obrigação constitucional, ter “trocado de cadeiras” com o seu primeiro-ministro Dimitry Medvedev, Putin regressa à presidência em 2012, desta vez sob um coro de assobios e manifestações populares. A “carnificina” não demoraria muito a começar. O presidente esmagou a oposição com acusações de corrupção, detenções e deportações para colónias penais – o caso das “Pussy Riot” foi porventura o mais famoso. A anexação da Crimeia viria a seguir. “Desperate times, desperate measures”, Putin sentia-se em decadência e iria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para alcançar a sua sobrevivência política e pessoal.

Feitas as contas, desde 2014 – ano da anexação – Putin foi bem-sucedido em reerguer-se e a reerguer todo o seu regime, que, anos antes, parecia já estar muito próximo do fim. Prova disso são os resultados legislativos de 18 de Março. Apesar da – ainda que apenas e só aparente – concorrência de Pavel Grudini do Partido Comunista, Putin foi reeleito com mais de 76% dos votos dos cerca de 75 milhões de russos que se deslocaram às urnas. O punho de ferro pelo qual Putin tem a Rússia presa não parece vir a perder nenhuma da rigidez nos anos vindouros. Por mais limitações constitucionais que existam ou até objeções à sua continuidade, continuará sempre a exercer a sua influência direta ou indiretamente. Assustadoramente, essa influência poderá estar a ramificar-se para lá das fronteiras do país que governa, com a suposta interferência do regime russo no desfecho das eleições norte-americanas de 2016 a ser um dos principais exemplos daquilo a que o líder russo poderá almejar. Estará o domínio mundial tão fora do seu alcance?
    
Um homem com a sua obstinação e sede de poder nunca se cansará de querer possuir mais e melhor. É este desejo que motiva a sua existência. Em líderes honestos e intrínsecos, nos quais o virtuosismo e justiça são palavras de ordem, talvez essa obstinação não se constitua como um problema, até, porque, nesses indivíduos, tende, maioritariamente, a não fecundar. Contudo, em governantes irremediáveis e sem escrúpulos, esse sentimento irá corromper “ad-eternum”. Resta apenas aos líderes mundiais precaver qualquer nova chama que venha a deflagrar e terem a coragem para arregaçar as mangas e combater o fogo.

Gonçalo de Sousa Tavares Pé d'Arca

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